Perceção do Racismo

Marco Binhã/ Agosto 2, 2020/ Direito da Igualdade, Outros

Desde há muito que entendi que a realidade e a perceção de cada um do que é a realidade são coisas distintas. Vim também a entender que essas realidades (a da coisa em si e a da respetiva perceção) têm importância significativa na vida em comum e em sociedade.

A Carta das Nações Unidas, de 1945, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, de 1965, a Diretiva 2000/43/CE do Conselho, na sequência da revisão operada pelo Tratado de Amsterdão, de 1997, que acrescenta à proibição da discriminação em função da nacionalidade, no art. 13.º do Tratado da Comunidade Europeia, a proibição da discriminação também em função da raça, a Carta dos direitos fundamentais da União Europeia, de 2000, a Constituição da República Portuguesa, de 1976, a Lei 134/99, ora, entre outras, Lei 93/2017, são exemplos de textos legislativos com normas jurídicas que fazem dos comportamentos racistas, comportamentos marginais, danosos às pessoas que ofendem com esses comportamentos e à sociedade como um todo, concluindo que são comportamentos censuráveis, ilícitos, inclusive sob a forma de responsabilização civil e criminal.

Desde há muito que a sociedade europeia tem vindo a marginalizar os comportamentos racistas. Todavia, os comportamentos racistas são ainda demasiado frequentes e muito raramente censurados.

Racismo, onde quer que exista, seja em África, na Ásia, na Oceânia, na América, na Europa, ou nos Pólos, é para acabar. Todavia, observo que as pessoas que têm comportamentos racistas, ou os apoiam ativa ou passivamente, parecem não ter a perceção de que em Portugal, hoje, os comportamentos racistas são proibidos e criminalizados.

Observar que o racismo na perceção dessas pessoas não é um comportamento marginal, proibido, é a prova de que o Estado falha na censura do comportamento racista.

São da área da educação e da justiça as instituições em que o falhar na defesa da dignidade da pessoa humana, no que aos comportamentos racistas diz respeito, mais significado e importância tem para a perceção da proibição, marginalização, censura, desses comportamentos.

O racismo é uma tradição já com séculos na Europa. Por muitas leis que se façam, se a perceção for de que tais leis na prática não existem, e certo de que os agentes de qualquer comportamento de racismo estão à vontade e não serão com a força do Estado censurados pelo ilícito que cometeram. A tradição permanece e resta à sociedade, sem os recursos do Estado, vencer estes comportamentos marginais.

Por outro lado, na perspetiva da vítima, a experiência e a perceção de que os comportamentos racistas não são censurados constrói a errada e injusta, posto que exagerada, conclusão de que: todos os que podem ser racistas podem-no ser à vontade e muito provavelmente o são. Esta perceção que estende ao todo o conhecimento que se tem de uma parte é aumentada e confirmada pelas experiências que conhecemos de outras pessoas vítimas do mesmo.

Esta experiência é ainda aumentada se, por exemplo, vivemos num aglomerado habitado por pessoas de pele mais escura e vemos que só estas urbanizações é que são “encerradas” pela polícia: – “ninguém entra, ninguém sai, nem para ir para o trabalho” – para cumprimento de mandatos que, após a revista a várias casas da urbanização “encerrada”, no final, vemos resultar em menos de meia dúzia de suspeitos. É um exemplo do que necessariamente associamos a aglomerados habitacionais de, principalmente, pessoas de pele mais escura. Exemplo do menor respeito que é prestado às pessoas que ali vivem.

Na prevenção do crime e nas operações policiais a raça em nada deve importar, nem na ponderação da operação, nem na sua execução na atitude de cada polícia. A evidência é de que o fenómeno criminológico toma as pessoas da sociedade, sem distinção de idade, estatuto social, nacionalidade, ou do tom da pele. Se se “encerrasse” um bairro não tão caracterizado de ser habitado por pessoas de pele escura e se vasculhassem várias casas desse perímetro, talvez se encontrasse a mesma meia dúzia de suspeitos de qualquer crime – não se faz porque aqui talvez tenha valor a ponderação do prejuízo para a dignidade das pessoas inocentes que seriam também afetadas por esse “encerramento”.

Os comportamentos manifestos de racismo são a minoria de uma minoria. Igual mal fazem os comportamentos mais frequentes dos que censuram o jogador que se sente ofendido com comportamentos racistas comuns vindos das bancadas; ou do julgador, ou do procurador, que se convence da culpa de um sujeito porque, pela falta da familiaridade não se coloca, nem procura colocar-se no lugar do sujeito que julga, isto partindo eu do pressuposto de que o liberalismo mais do que a República e a democracia, obrigam a que o julgador sinta que está sempre a julgar cidadãos com os quais podia trocar de lugar, cidadãos com o mesmo estatuto que o seu.

Há umas semanas foi notícia que uma das medidas do Estado no caminho de erradicação do racismo é monitorizar a liberdade de expressão de um corpo profissional com a suposta finalidade de fazer diminuir os comportamentos racistas desse corpo profissional. Critico esta medida como lamentável e paradoxal.

Lamentável e paradoxal, porque, ao procurar diminuir os comportamentos de menor respeito sobre certas pessoas, diminui o respeito que presta aos direitos fundamentais das pessoas desse corpo profissional na sua vida privada, bem como faz de todo um corpo profissional “suspeito” de comportamentos que são só de alguns. Quando o que importa é que, tal corpo profissional, na sua atuação profissional, adote necessariamente comportamentos de igualdade de respeito por todos os cidadãos. E aqui o Estado tem todo o poder e legitimidade para impor, se o quiser.

Essa proposta monitorização revela o contágio, e sintomas, de “certa luta contra o racismo”, que não é o caminho que resulta na erradicação do racismo.

A verdadeira luta contra os comportamentos racistas é a luta pela dignidade da pessoa humana. É um caminho que deve ser feito de liberdade universal e responsável, escuta e unidade.

A censurar, censura-se quem é digno de censura, na medida do comportamento censurável. Deve-se, sim, censurar as pessoas, profissionais ou não, de qualquer setor, de qualquer atividade que têm comportamentos racistas, pelos comportamentos racistas que tiverem.

O racismo é proibido e criminalizado, porque o comportamento racista revela desrespeito pela dignidade da pessoa humana de uma forma própria não confundível com outros desrespeitos à dignidade da pessoa humana.

A ofensa a uma pessoa com motivação racista revela a necessidade de prevenção que se tem de fazer por impor o respeito pela dignidade da pessoa humana, pelo simples facto de em causa estar uma pessoa, ou seja, a necessidade do dever de reconhecer a igual dignidade do outro ainda que este aparentemente não se pareça comigo; independentemente de desconfianças que resultem do facto do outro não ser tão familiar como os outros que encontro no local onde nasci.

A sociedade onde falte, ou onde não seja promovido, o respeito pela dignidade da pessoa humana é uma sociedade que sofre da pior corrupção.

Daí não apenas as leis de um certo tempo, mas a atitude quotidiana, adequada e sistemática de exigência de respeito pela dignidade da pessoa humana, pelo menos, pelo tal mínimo, tem o significado de que a dignidade da pessoa humana deve sempre, necessariamente, em todas as oportunidades, de ser reconhecida e valorizada. A perceção de que a justiça é feita a quem comete comportamentos racistas é o melhor resultado de quem luta contra os comportamentos racistas.

A Justiça deve ser feita sobre os que têm comportamentos racistas em favor da Justiça que deve ser feita à dignidade de todas as pessoas humanas.

Não apenas quando o racismo é revelado num crime tão hediondo como o de homicídio, que todos devemos lamentar.

Barreiro, 2 de Agosto de 2020

Marco Binhã

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