Carta sobre o racismo

Marco Binhã/ Junho 21, 2020/ Direito da Igualdade, Outros

Publicado no Jornal Observador.

Sou Marco Binhã e não vou aqui escrever sobre o meu privilégio que não é

muito ou nenhum, é apenas o de ser pessoa. Posso acrescentar porque faz parte do currículo que valoriza este escrito que sou português. Não talvez português de verdade, porque não sei quem são, mas português. Não apenas português. Acrescento pela mesma razão de valorização, sou também guineense e caboverdeano. É a estas sociedades que tenho relação de nacionalidade e destas que tenho aprendido os costumes. Português, guineense e caboverdeano. Aos portugueses de verdade não deve acontecer tanto e a muitos outros também não, mas a mim acontece frequentemente perguntarem-me: – Sim, português, mas…? – eu percebo logo o caminho da interrogação e atalho. Percebo porque a minha pela é mais escura. Note que não sou eu que sou mais escuro é só a minha pele. Atalho interrompendo a pergunta apresentando-me, de hábito, como português, guineense e caboverdeano. Por essa ordem ou por outra dando preferência à do interlocutor, se percebo a relação deste com alguma dessas nacionalidades. É uma apresentação talvez egocêntrica esta. Serve para evitar, ou baralhar, ideias sobre quem sou pelo simples facto da nacionalidade a que tenho direito pela nascença.

Perdoem-me o título deste texto. Pode ser um título imerecido. Foi do que me lembrei. É consequência dum defeito meu, não me incomoda uma folha em branca, mas incomoda-me escrever sem que seja sob um título.

Mais da minha experiência que pode valorizar este texto é o de ser advogado que não gosta de falar. Um que prefere ouvir e observar para atuar com aquela que adquiri e que entendo ser a melhor informação. Diria ainda que gosto de me apresentar como humanista mas tenho vindo a procurar que a conclusão resulte dos meus feitos mais do que das minhas palavras. Assim seja.

Perguntam-me quando é que a expressão “negro”, “preto” ou “cigano”, ou etc. pode ser racista. Começo por aqui por ser este o melhor caminho para este escrito. Chamar “negro” ou “preto” a alguém literalmente não é racismo. Se a pessoa visada for de pele morena a negra, até entendo que pode ser um modo adequado de distingui-la numa mole. Tão adequado quanto distinguir com a expressão grisalha, branco, ou camisa branca. Faz parte da liberdade de expressão de cada um a escolha das palavras que usa.

Quando é que entendo que essas expressões podem ofender?

Imaginemos que eu usaria a expressão “vagina” para distinguir uma mulher num meio só de homens. Talvez não fosse a expressão mais feliz. Quer para os que me ouvissem, quer em especial para a mulher visada. Talvez ficassem estes escandalizados e a mulher visada mais ofendida do que os outros. Essa reação não resulta da palavra em si. “Vagina” não é ofensiva, nem é do vernáculo um palavrão. É uma expressão comummente aceite e consta até de manuais escolares, tal como “negro”, ou “preto”. Todavia, estou certo que nas sociedades que conheço é entendimento comunitário de que tal expressão para distinguir uma pessoa não é a mais adequada.

Não pretendo beliscar o direito fundamental do ser humano e da sua comunidade à liberdade de expressão individual. Pretendo até reforçá-lo. Quem usa palavras que podem não ser adequadas pode fazê-lo. Todavia a comunidade não necessariamente ao nível jurídico mas ao nível social, moral ou outro poderá, ou deverá, ouvindo e, não partilhando, manifestar desacordo ou, mais simples e mais eficaz, optar por afastamento dessa voz.

Uma mulher poderá explicar com melhor informação do que eu, da sua experiência, a eventual ofensa que sentiria em ser tratada por “aquela vagina”. Perdoem-me as mulheres pelo exemplo que escolhi.

Uma pessoa de pele negra a ser reduzida à cor da sua pele, não é por não entender a metonímia que se sentirá diminuída. É pelo significado que a expressão tem.

“Negro”, “preto” e aos mais novos “pretinho, escurinho”, por muitos anos e ainda hoje em muitas expressões idiomáticas em português e noutros idiomas da Europa são expressões usadas para dirigir-se às pessoas de pele mais escura que se entendia serem inferiores apenas por terem a pele mais escura. Por pessoas de pele branca, principalmente, é que a expressão seria usada com este significado.

Ainda que vissem a pessoa de pele mais escura a suportar o mesmo ou mais, essa pessoa era inferior. Ainda que vissem essa pessoa de pele mais escura a correr o mesmo ou mais essa pessoa era inferior. Se a vissem a pessoa de pele escura a fazer com sucesso os mesmos cálculos e mais complexos do que fazia a pessoa de pele mais clara, a pessoa de pele escura era à mesma inferior. Ainda que a vissem tão altas ou maiores, essa pessoa de pele mais escura era inferior.

Não sou historiador, nem tenho disso pretensões, mas árabes e pessoas de pele mais escura já andavam pela Europa continental, em especial a mediterrânica, desde muito antes dos “Descobrimentos”. Desde antes da civilização dos romanos. A qual muito lidou com a interculturalidade, quer dizer, a qual teve muitas relações com pessoas de comunidades que não lhe eram endógenas. A qual chegou a ter importantes interesses e, com Marco António, sede no Egipto. Inclusivamente, conta-se Júlio César terá tido um filho de sangue egípcio, que terá escandalizado mais por esse motivo do que por outro qualquer de cor de pele ou etc.. Nesses tempos antigos ver uma pessoa negra seria ainda assim tão raro que ninguém se lembraria de se achar superior ou inferior ao outro e fazer disso uma prática reiterada aceite pelos pares. Nesses tempos, nessa civilização, uma pessoa de outra cultura era ignorada quando possível, no máximo, em situação de paz, era a humilde curiosidade normal sobre um estrangeiro que dominaria a relação que se estabelecesse.

Todavia, aconteceu algures pelos séculos XIV e XV este velho continente encontrar-se nas terras africanas, onde as pessoas de pele negra eram necessariamente a maioria. A aventura inicial do velho continente em terras africanas deu lugar à concupiscência. É facto histórico. O ser humano tem muitas vontades (é o seu maior poder) e os seus projetos têm múltiplos resultados. Enquanto dum lado da relação entre o “Descobridor” e o “Indígena” seria a humilde curiosidade banal sobre o estrangeiro, do outro o medo de em inferioridade numérica o propósito egoísta ser descoberto, quase como quando Deus surpreende Adão ao perguntar-lhe: – “Quem te disse que estás nu?”

Entendo eu, aqui assim ligeiramente fundamentado, que a instituição da inferioridade da pessoa de pele negra face à de pele clara teve na sua origem o medo e a necessidade daí resultante de controlar populações de “negros” nas suas próprias terras de África, com os efectivos que couberam nos batéis que não naufragaram no caminho. Resultou. Não quer dizer que a ideia da superioridade do homem branco seja verdade, ou sequer que exista ou não junto do homem asiático. É um mito, foi um mito, que resultou. Mitos, muitos outros mitos e motivos, haviam da superioridade da nobreza sobre o povo. E sobre essas pessoas, a de pele clara estabeleceu o seu poder na terra dessas próprias pessoas. Não em toda a terra africana, nos lugares onde puderam; e continuou na terra para onde levaram essas pessoas. Domadas como animais, com trato, transporte e espoliados, explorados, como tal. É facto histórico. Tão inegável como o holocausto. Se nas terras dos de pele negra, os de pele branca poderiam ainda ter algum medo daqueles; transportados milhões para o Velho continente Europeu e principalmente para o Novo continente, desterrados, a superioridade do homem branco foi assim ganhando suposta objetividade pela sua normalidade no sentido de comum.

As coisas acontecem como acontecem não são certas, nem erradas. São como são. O julgamento é da história e será feito depois com a informação que houver. As pessoas fazem o que fazem com a informação que têm para as necessidades que têm; sem esquecer a necessidade quiçá principal de comunidade do ser humano.

Séculos pesaram nessa normalidade.

No séc. XVIII, vem o que Kant – o filósofo que enunciou que agir correto é agir de tal maneira a vermos no outro um igual com um fim em si próprio e não como um meio para os nossos fins – descreveu como a emergência do homem da sua auto-negligência em permanecer imaturo, o Iluminismo. Saper audare! a máxima kantiana que melhor descreve a emergência dessa época.

Começou aí no meu entender a censura a ser mais comum na sociedade àquela normalidade da superioridade do homem branco ou da pessoa de pele clara sobre a de pele escura. Normalidade que tinha o seu equivalente e origem epistemológica na velha Europa de então na instituição da superioridade da nobreza e do clero sobre o povo. No fundo, o recurso à instituição da superioridade de certos homens sobre outros por certo motivo era a transposição da realidade dessa estrutura social europeia que o povo, que era a classe social que ia para as áfricas, conhecia como normal.

Hoje a teoria da superioridade do homem branco ou da pessoa de pele clara já não é normal. A maioria da sociedade hoje diz entender o outro como igual e procura fazer cumprir essa afirmação. Essa afirmação é uma espécie de promessa da sociedade das pessoas de pele branca às de pele escura.

Promessa essa mais redentora do que apaziguadora. As pessoas de pele escura sempre puderam revoltar-se e lutar contra as de pele branca que a oprimia. Todavia, não foi e não é essa a opção da humanidade. A indignação gera desconforto e revolta, todavia, não ao ponto de guerra civil, porque seria disso que se trataria, mas não é assim, não é disso, a natureza humana nessas situações. Veja-se o povo judeu ao sair do Egito. Conheça-se a obra de Primo Levy. Observe-se a situação atual dos 99% relativamente aos 1% que detêm mais de metade da riqueza criada. Uma convivência possível ainda que desconfiada.

Apesar da promessa situações há que revelam a presença da instituição da supremacia do homem branco sobre o negro. O que resta da supremacia do homem branco contém o desenvolvimento da sua aplicação a todos os que não se integram nesse conceito de homem branco.

Tive um dia, como advogado, um julgamento duma mulher que respondeu agressiva a um homem que às 8h da noite iria violá-lo. Até aqui, julgo eu, nenhum dos leitores encontraria motivo de julgamento na tradição, solenidade e formalidade, duma sala de tribunal por essa “ameaça”, julgo eu. Posso descrever essa mulher como frágil perante aquele homem, a vítima em causa da ameaça. A mulher foi condenada, não a prisão, mas a multa por essa “ameaça”. Não é a prisão mas é uma condenação. Talvez se perceba melhor a condenação com o seguinte acrescento: a mulher era da comunidade cigana. Quem compreendeu melhor essa condenação depois deste acrescento, sabe o que é o racismo.

Racismo nada tem a ver com raças. Racismo tem a ver com isto – injustiça porque não é tido por igual. Qual é a raça do povo de uma sociedade que lhe corre historicamente muito sangue nas veias e artérias, a norte germano e a sul árabe, por tantos anos que a cultura e a cor da pele ainda é aparentada à desses germanos e árabes?

Pretos, ciganos, até estrangeiros de pele clara vivem esta inferioridade social relativa. Os mais desfavorecidos economicamente também. Então um negro pobre…, ou melhor, uma negra pobre…?

Esta inferioridade social relativa – termo que surgiu aqui e que me será útil aqui – é um sentimento que aumenta a cada vez que o sujeito conhece um exemplo que revela a realidade dessa instituição, a sua vigência atual e que não é ilusão atávica. Este sentimento corta ambições, gera frustrações, guetos, pobreza, perda de fé na justiça formal da sociedade, e com isso tudo, maior susceptibilidade a problemas de saúde mental. Que não geraria se não fosse a fé destas pessoas na promessa redentora supra referida.

A referida promessa não é errada. A mim parece-me certa e realidade intemporal em todos os locais. É preciso por vezes mais empenho em afirmá-la. Quando se nota a perda de empenho e consequentemente revela-se o aumento e qualidade dos exemplos de “inferioridade social relativa”, aumenta a indignação. Só não seria assim se não fossem pessoas.

Um dia um dos meus filhos, nos seus quatro anos chegou a casa vindo da pré-escola a perguntar-me duma maneira séria imprópria talvez da idade e da qual não me esqueci se ele era um “et” abreviatura de extra-terrestre. Um pouco depois de estar esclarecido dessa pergunta suscitou que aprendera na escola o lápis “cor de pele.” Se ele estava imaculado a este respeito, não sei. Sei que nesse dia aprendeu aos quatro anos que alguns tinham a pele clara e outros não e que alguns tinham a cor que correspondia à referência do que é ter cor de pele e outros não. Aprendeu isso na cabeça dele de 4 anos, nos termos e imagética que nessa cabeça caberiam, mas foi o que aprendeu.

Indignado fui à escola, falei com a professora e ela mostrou-se atenciosa mais do que há vinte anos atrás quando numa mesma indignação dirigi-me à professora da primária da minha irmã mais nova quando esta aprendeu também do tal lápis cor de pele. A professa de agora preocupada mostrou-me mais tarde que a gama de lápis “cor de pele” abrangia em algumas marcas do rosa claro ao negro. Eu preferia que não houvesse “lápis cor de pele”. Transparece muito claro o propósito de haver “lápis cor de pele” e insistir nisto para mantê-lo de forma politicamente correta para mim mostra a persistência do propósito. Do que me lembro esta professora concordou comigo e noutras salas de outras escolas como é?

“Negro”, “preto” ofende quando faz significar à pessoa de pele escura a afirmação normalmente inefável, mas omnipresente, de que “és inferior”.

Deve escandalizar, e ofender, fazer do visado menos digno. Não é correto. Não é conforme ao civismo da sociedade em que vivo, desde os pilares em que assenta desde o Iluminismo.

Haja liberdade da pessoa para usar os termos que quiser para se exprimir. Sou social-democrata, acredito no materialismo histórico e acredito também que a liberdade de expressão é o principal meio da humanidade para se desenvolver, em especial neste mundo globalizado.

Acho menos errado ofender alguém com palavras, do que decidir a legalidade da entrada dum estrangeiro não determinantemente pela pessoa em si que pretende entrar no país, mas em função do interesse público ou nacional dessa entrada no país. Isto ofende mais do que meras palavras. Onde está o imperativo categórico na fórmula kantiana na oportunidade dessa decisão?

Muto há que cumprir até verificar-se a promessa redentora! Disto as consciências dos responsáveis da sociedade portuguesa, dos titulares dos órgãos de soberania desta sociedade, não deveriam descansar. Disto as consciências destes deveriam ficar desconfortáveis por não a terem cumprido ou por na sua oportunidade terem adiado o seu cumprimento. São os atos destes responsáveis mais importantes do que os de qualquer outros, no sentido de terem mais significado para a verificação do cumprimento ou não dessa promessa redentora.

s.m.o.

Barreiro, 21/6/2020

Marco Binhã.

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