Quando dos envolvidos no crime resulta a única prova

Marco Binhã/ Julho 5, 2022/ Areas de Atuação, Direito Administrativo, Direito Constitucional, Direito Criminal, Direito da Igualdade, Direito do Processo, Direito Internacional e Comunitário

Índice

INTRODUÇÃO.. 3

Estatuto dos protagonistas processuais envolvidos. 4

No direito processual civil 4

O Autor 4

O Réu. 5

No Direito Processual Penal 5

O Estado. 6

Ofendido/Vítima. 8

O Suspeito/Arguido. 11

Da valoração das declarações dos envolvidos no crime. 16

O TESTEMUNHO COMO ÚNICA PROVA DO PROCESSO.. 18

CONCLUSÃO.. 20

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 21

INTRODUÇÃO

São aqui objeto genericamente as situações judiciais em que são os próprios envolvidos na situação factual em apreço a fonte da verdade carreada para o processo, designadamente, de declarações dos arguidos (e aqui entendidos genericamente os instigadores, co-autores e cúmplices) e os ofendidos.

Será feito um breve cotejo do regime processual civil com o processual penal para ilustração. O presente trabalho é do âmbito do direito processual penal, atenderemos ao regime geral do código de processo penal, com especial enfoque no âmbito das situações de violência doméstica, tudo à luz do regime vigente e com a experiência na prática como advogados no Brasil e em Portugal.

O chamamento do direito processual civil revelar-se-á útil para a finalidade proposta. Bem como fator de evidência de alguns aspectos comuns sob o prisma de quando os envolvidos são os únicos meios da prova. Desde logo por terem em comum os envolvidos pretenderem fazer valer o “um contra o outro” típico do processo civil, todavia, no âmbito do processo penal.

O tratamento que deve ser dado no processo à “palavra de um contra a do outro” deve ser tão conforme à política criminal determinada pelas leis da República quanto conforme aos direitos, liberdades e garantias dos envolvidos, dado que sem tal determinação a posição do intérprete da prova em processo penal resultado dessas circunstâncias deve ser o de um non liquet e subsequente zero intervenção por parte do ius imperium.

Estatuto dos protagonistas processuais envolvidos

Da exposição do estatuto processual penal do Arguido e do Ofendido, obtido de um dito sistema jurídico dos sujeitos processuais, isto para anunciar o cotejo de aspetos do direito processual civil que procura a verdade através de uma prevalência do contraditório e de regras formais como do ónus da prova, com o direito processual penal que procura a verdade que fundamente a atuação da Administração para limitar o valor fundamental, em Estado de Direito, da liberdade em conformidade aos direitos, liberdades, garantias e aos fins de segurança e de ordem pública do Estado.

No direito processual civil

O Autor

É o primeiro sujeito do processo civil, o Autor.

O Autor está na génese da atuação judicial de processo civil. É pelo impulso do Autor, e do modo como este deduz em alegações a sua interpretação dos factos que é dada a identidade da ação de processo civil. Note-se que não há tipicidade das situações antijurídicas ou infratoras que limitem a um catálogo as situações que podem justificar a qualquer pessoa o recurso à jurisdição civil para obter uma atuação soberana da Administração, soberana no sentido de que se impõe à vontade da pessoa a quem é dirigida, acompanhada da possibilidade coercitiva. Impõe então em consequência o direito processual civil o encargo, o ónus, a responsabilidade, sobre o Autor de explicar bem onde há a infração, delitual ou contratual, o ilícito e as consequências da verificação do ilícito em bens que são particulares seus e na medida em que a “propriedade” sobre esse bem ainda que seja propriedade sobre um bem meramente inteletual seja juridicamente protegida e depois de ter explicado bem, em condições mais ou menos tabeliares, essa pessoa que recorreu ao Estado tem em dado momento do processo autorização para continuar e, para obter o que entende ser a justiça que lhe é devida, é-lhe dada em sede de audiência de julgamento a oportunidade de provar o que afirmou.

Provar aqui é convencer da “verdade” o interprete soberano em nome do Estado, quer dizer da Administração, ali presente, o qual é, o juiz.

O Réu

Aqui, já evidenciámos também o papel do Réu, que na medida em que não seja autor provocado, secundário, determinado pela atuação do autor supra primário a apresentar atuação contra aquele com a dedução da reconvenção (na medida da qual fica sujeito ao mesmo estatuto do Autor), deve explicar muito bem, em condições as mais aproximadas às que teve o Autor o motivo porque o Estado não deve exercer poder soberano no âmbito indicado pelo Autor, ou o motivo porque o Estado ainda que deva exercer poder soberano naquele âmbito não deva convencer-se da “verdade” que o Autor pretende provar.

Note-se no processo civil a existência de normas que determinam em face da omissão do Autor consequências automáticas sobre a “verdade” da explicação do Autor, como efeito cominatório à “infração” do Réu em, total ou parcialmente, com a revelia ou com a não observação do ónus da impugnação especificada, não querer vir a jogo, ou a duelo, em tudo o que o Autor pediu ou apenas em parte do que o Autor pediu. Outras interpretações poderão haver do efeito cominatório e do ónus da impugnação especificada como excecionais ou espúrios à estrutura do processo civil, debate que é aqui alheio.

Em termos estruturais, pelo menos para o efeito aqui proposto, está exposto o processo civil.

No Direito Processual Penal

O Estado

O primeiro sujeito do processo penal é o Estado, na configuração de quem administrativamente competente e habilitado recebe a notícia de situação que interpreta dever ser investigada como eventual crime. O que cumpre em primeira linha explicar melhor.

A atuação administrativa em geral e a atuação de administrar justiça do Estado têm a mesma natureza. É ilustrativa desta afirmação a análise histórica na europa que nos apresenta no tempo feudal o senhor, nobre, dominus das terras, com a prerrogativa de administrar justiça entre as pessoas nesse domínio. Prerrogativa que o senhor, nobre, dominus da terra, manteve durante o período do absolutismo só a vindo a perder em face da progressiva tutela pelo Estado, com o avanço do liberalismo, dos direitos, liberdades e garantias do cidadão. Determinando-se assim a separação do seu direito de proprietário sobre as suas terras, do de administrar justiça.

Isto para poder-se afirmar aqui que a atuação administrativa ou processual penal têm a mesma natureza. Porém, neste âmbito, a atuação administrativa passa a atuação processual quando em causa está a notícia de eventual crime.

Aí a atuação administrativa, por força dos princípios que informam a existência do processo penal, desde logo a proteção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão que eventualmente possa ser investigado e condenado a perda da sua liberdade, passa por força das normas que dispõem essa proteção a uma atuação sob um regime legal distinto e não mais meramente administrativo mas processual penal.

O pretenso cidadão a proteger, pretenso agente do crime, pode até não estar identificado no momento da notícia parte-se, deve partir-se do pressuposto de que existe e existindo será identificado e identificado devem ter sido assegurados os seus direitos, liberdades e garantias desde o início da atuação.

Não há como misturar a atuação administrativa e o exercício de poderes administrativos no âmbito que pertence à proteção disposta pelo processo penal. A atuação de um órgão de polícia criminal, de uma entidade reguladora, etc. é administrativa até que surpreenda um eventual facto que possa ser qualificado como crime.

Note-se que neste âmbito, no direito do processo penal, existe um elenco fechado, restrito, rigoroso, de situações que podem ser seu objeto. Não cabe ao agente administrativo que recebe a notícia cuidar de que a situação em causa preenche todos os requisitos para ser interpretada como crime. Tal interpretação compete a outra entidade e noutro momento do iter processual.

A esse agente administrativo que é surpreendido com a notícia de um crime compete apenas interpretar o suficiente, em face da política criminal da Administração, se a situação tal qual passou a conhecer pela notícia, pode ser ou não, interpretada como crime. Para o efeito perante a ausência de outros critérios políticos democraticamente estabelecidos a interpretação pelo agente de que a situação preenche ainda que parcialmente um dos requisitos para ser crime é suficiente para dar início a um processo penal.

É o Estado no exercício dos seus poderes de soberania o primeiro sujeito do processo penal e é, estruturalmente, para o Estado que são dispostas as normas do direito processual penal, distintamente das do processual civil, estruturalmente, dirigidas ao Autor e ao Réu. A mesma responsabilidade que se exige ao Autor no processo civil ao estabelecer a instância civil, deve ser exigida ao Estado, ao estabelecer a instância penal.

Após a notícia do crime, o Estado deve no exercício de investigação que deve encetar, desde logo em primeiro lugar, identificar o próximo sujeito processual que é o Ofendido, ou seja, cada uma das pessoas que na medida em que a lei dispõe o facto típico como crime, possam ter sido prejudicadas nos seus bens, entendidos como supra é referido para o processo civil, ainda que seja um bem meramente intelectual, desde que, sempre, na medida que seja compreendido no facto tipificado como crime.

A finalidade da Administração de manter a segurança e a ordem pública, pode ser usada numa perspetiva autopoiética em contraponto à finalidade da tutela dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Todavia, com extremo cuidado, dado que não é principalmente pela finalidade de segurança que pela sua natureza deve ser determinado o direito processual penal – ou seja, a investigação no inquérito do processo penal e o princípio maior que a move é secundária em face da responsabilidade da Administração em tutelar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Não deve em momento algum ser equacionada a restrição de um direito, liberdade e garantia, em face dos interesses apenas da investigação, ou da manutenção da segurança e ordem pública. Deve sim, fazer-se tal equação no conflito de direitos, liberdades e garantias entre um determinado cidadão e outros ainda que indeterminados, proporcionalmente à atuação lesiva à luz desse escalão normativo de um face ao outro ou outros.

Ofendido/Vítima 

Haverá sempre alguém ofendido com a atuação tipificada como crime. Entre os ofendidos com essa atuação, os haverá que independentemente da sua vontade em queixar-se dos factos em investigação como eventual crime, a lei considera ofendidos e devem ser especialmente protegidos de tal atuação possivelmente criminosa ainda que não se sintam lesados com a mesma ao ponto de se queixarem; outros haverá que devem em determinado prazo se queixarem formalmente ao Estado da atuação possivelmente criminosa como lesiva dos seus bens, bens ainda que, repete-se meramente intelectuais, para compor de forma determinante a verificação da eventual situação como crime; outros ainda haverá que além de deverem queixarem-se, deverão para esse efeito ter uma participação de protagonista na acusação no âmbito do processo penal – num misto de processo penal com o processo civil, com a eventual participação da Administração na composição do estabelecimento da instância e na demonstração da “verdade” da mesma conducente à criação da convicção no interprete julgador que decide da condenação e dos seus termos ou da não condenação. Assim distinguindo-se o que o direito processual penal distingue como crimes públicos, dos crimes semi-públicos, dos “crimes particulares”.

Ao ofendido formalmente identificado no processo deve o Estado, qualquer que seja a natureza pública, semi-pública ou “particular” do crime, lealdade no que à transparência e oportunidade de atuação no iter processual diz respeito, notificando-o nesse pressuposto de atos do processo.

Ao ofendido identificado no processo compete ainda o direito exclusivo à sua palavra, que não pode deixar de ser entendida como o direito a expressar-se, a ser considerado (no sentido de registo em auto ou outro do que entende ser importante) e percebido (no sentido de ser compreendido e ter interlocutor que demonstre essa perceção).

Direito à palavra que deve ainda ser entendido quer na sua vertente ativa, manifestando livremente o Ofendido tudo o que tiver por conveniente (usando a investigação o que for útil à investigação); quer na sua vertente passiva de dono do expresso silêncio pretendido no que à sua palavra e outras manifestações suas dizem respeito.

Não tem o ofendido direito algum sobre o que testemunhas, autuantes ou não, afirmem ter visto, tem todavia, o ofendido direito a que não lhe sejam atribuídas manifestações que o próprio expressamente pretenda manter fora do processo, ainda mais se tais manifestações forem do foro íntimo ou familiar.

Note-se que a proteção da unidade familiar é determinante tanto no processo civil, quanto no processo penal, para não obrigar a testemunha a prestar testemunho, convidando-a a não fazê-lo ou a querendo fazê-lo a fazê-lo com toda a verdade e nada mais do que a verdade (não vá por outro lado a usar a oportunidade do testemunho para ajustar eventuais contas familiares).

Ao ofendido identificado no processo compete ainda a faculdade de usar a investigação no processo para fundamentar no processo penal pedido de indemnização com o âmbito da proteção dos pedidos nos tribunais civis para correr sob as regras do processo penal. Dificilmente se justificaria que o tribunal numa mesma sentença se afirmasse num momento convencido duma verdade sobre determinado aspeto dum facto por qualquer omissão do ofendido, então lesado, ou do Arguido e se afirmasse noutro mais adiante convencido de que a verdade sobre o mesmo aspeto é outra, o que não significa que absolvendo da acusação criminal não possa o tribunal condenar pelo pedido de indemnização ou vice-versa.

Concluímos esta exposição sintética com vista ao que se pretende aqui evidenciar do estatuto do ofendido, com a afirmação de que o estatuto do ofendido é do âmbito da finalidade da investigação e da segurança e ordem públicas. Não havendo quid pelo qual direitos, liberdades e garantias do suspeito/arguido devam ceder perante interesses do ofendido, salvo seja no resultado da interpretação de colisão de direitos, liberdades e garantias. Como por exemplo no âmbito da proteção da vítima de violência doméstica, a fim de proteger a integridade física e psicológica desta, restringirem-se na medida do necessário, não excessivo e proporcional ao fim de proteção da integridade física e psicológica de alguém, direitos, liberdades e garantias do arguido, como por exemplo o direito deste à liberdade, à habitação, à família ou outro.

Neste circunspeto é útil a referência à Lei 130/2015 que em cumprimento da Diretiva 2012/29/UE estabelece um regime mínimo, muito claro, de proteção da vítima em território da UE.

Salienta-se no âmbito do Estatuto de vítima o regime previsto para as declarações de memória futura em que se prevê a tomada de declarações realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas. Bem como o dever da Administração garantir o acompanhamento da vítima no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento. Tendo verificado da nossa experiência que os profissionais forenses, nós Advogados, Magistrados, entre outros, temos muito a aprender no que respeita à sensibilização para as necessidades das vítimas a fim de permitir tratá-las de forma não discriminatória e com respeito e com profissionalismo, invocando aqui o art. 28.º e apelando ao investimento no cumprimento desta norma, sendo essencial o humanismo, o trato com humanidade, em todas as situações da vida, em especial quando em contato direto, ainda que por telefone, ou por e-mail, com alguém num assunto que é vulnerável à sua intimidade. 

O Suspeito/Arguido

Nos seus elementos caracterizadores o Arguido é a pessoa física ou moral (pessoa coletiva) identificada no processo penal como tendo parte na atuação de um crime e que por isso é sujeita à investigação. A partir do momento em que a pessoa identificada em causa é suspeita de ter participado de alguma forma na realização de um crime deve ser-lhe concedido na primeira abordagem por parte da Administração o respetivo estatuto de arguido.

Note-se o pressuposto de “pessoa identificada”. Caso o Estado aborde pessoa de interesse para compor uma situação de um possível crime sem ter a esse momento indícios que justifiquem que a mesma pessoa pode ter tido participação mínima que seja no mesmo, não carece de abordá-la revestida do estatuto de arguida, podendo abordá-la no estatuto então de testemunha.

Caso o Estado conhece que a pessoa que pretende abordar é possível agente do crime, ou seja, pessoa que tenha tido parte na realização do crime, essa pessoa é necessariamente suspeita, no sentido de sob investigação.

Sempre que a pessoa é suspeita no processo deve a Administração abordá-la necessariamente revestida do estatuto de arguida.

Da proteção da pessoa suspeita há um estatuto legal que protege os mesmos direitos, liberdades e garantias que ao arguido.

O estatuto formal de Arguido no processo ocorre a dado momento e com uma forma própria inequívoca e deve coincidir o momento da constituição formal de Arguido no processo com o momento em que o Estado pretende abordar pela primeira vez um suspeito.

A partir do momento em que formalmente a pessoa é constituída Arguida deve o Estado informá-la do essencial que justifica essa atuação excecional da Administração, nomeadamente, de que participação se trata, de que tipo de crime, em que data e em que local.

A partir do momento em que o suspeito é formalmente constituído arguido este passa a conhecer-se sujeito a determinado processo e a poder exercer os seus direitos, liberdades e garantias de defesa contra essa atuação da Administração que é o processo penal.

Todavia, já antes desse momento formal de constituição de arguido, o suspeito tem direitos aos quais a Administração na atuação processual penal deve conformar-se atento aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e responsabilizar-se.

Um dos direitos do suspeito é o de apenas por facto tipificado como crime no momento da sua atuação é que pode ser sujeito sob investigação de processo penal.

Não pode uma pessoa ser sujeito de um processo penal e já sob a investigação praticar um comportamento que venha supervenientemente a justificar esse processo.

O processo penal deve estar justificado desde o seu início ainda que seja apenas pelo indício da verificação de um dos elementos de um determinado crime. Não deve ser inalterável a interpretação do facto indiciado objeto de notícia de crime que estabelece o processo penal, fundando-o; deve-o ser sim inalterável o facto indiciado objeto de notícia de crime.

Não pode haver suspeito de um crime que ainda não se encontre tipificado como crime e vigente como tal. Nem pode haver suspeito de um crime, ou de um comportamento de participação em crime, que ainda vai ocorrer como tal.

Na hipótese de uma pessoa estar a ser vigiada sem o indício de objeto de notícia crime, a pessoa está a ser vigiada no âmbito de um processo que não é, nem pode ser, o penal.

Não pode a Administração usar instrumentos do processo penal numa situação em que se encontra em mero processo administrativo “à procura de um crime para mandar investigar em processo penal”.

Ainda que o suspeito não saiba e que portanto não possa exercer o seu estatuto de Arguido, a Administração sabe e são para a Administração as normas que estabelecem os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, aqui incluídos os sob investigação de processo crime.

Os suspeitos têm no juiz de instrução do processo penal a pessoa com a função de proteger os seus direitos, liberdades e garantias.

Quando para as finalidades da investigação entende-se que não deve o suspeito conhecer que é suspeito antes do exercício por parte da Administração de alguns meios de obtenção de prova que possam prejudicar os direitos, liberdades e garantias, é essencial a atuação do juiz de instrução.

O nosso propósito neste trabalho, é de iure condendo, não necessariamente de iure condito. Frisa-se aqui isso porque a norma de processo penal é de constituir arguido apenas com a acusação ou com a abertura de instrução, o que é deficiente, ainda que haja norma excecional a determinar obrigatória a constituição de arguido quando a Administração tiver necessariamente de se manifestar ao suspeito e não tiver outra desculpa que não seja a da investigação criminal, quer dizer quando a Administração no âmbito da investigação tiver de aplicar uma medida que limite a liberdade do suspeito sobre si ou sobre os seus bens.

Bem como, a atuação do juiz de instrução devia ser prevista normativamente em aberto durante o processo para a proteção dos direitos, liberdades e garantias do suspeito que ainda não é arguido. A atuação do juiz de instrução está apenas prevista para situações tipificadas como por exemplo, escutas telefónicas. Além do previsto no art. 268.º CPP, todas essas situações tipificadas são de iniciativa do Ministério Público e nenhuma do suspeito. De iniciativa do suspeito é a arguição de irregularidades e nulidades de atos do processo.

Entre os direitos, liberdades e garantias do suspeito que devem ser protegidas porquanto não for constituído arguido, constam entre outros todos os formalmente previstos no título II da Constituição da República, nomeadamente, os seguintes que se ressaltam: à defesa, à inviolabilidade da sua vida, da sua integridade física e psicológica, à identidade pessoal, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra todas as formas de discriminação, à presunção de inocência até ao trânsito em julgado de condenação, à liberdade, à segurança, à inviolabilidade do seu domicilio, sigilo e inviolabilidade de toda a sua correspondência física, eletrónica, etc., de acesso, atualização, retificação e atualização dos seus dados informatizados, de não ser separado da família, designadamente os pais dos filhos e os filhos dos pais, a exprimir livremente o seu pensamento sem impedimentos e sem discriminações, ao direito de deslocação pelo país e de emigrar, de habitação, de livre associação, de acesso à função pública, de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país, de segurança do emprego, de liberdade sindical e de direito à greve.

Estes entre outros, frisa-se. Desde logo também é direito do suspeito o de não responder no processo a perguntas feitas sobre situações em que o mesmo possa ser responsabilizado no foro criminal. Bem como o de constituir advogado no processo e a ser assistido por este em todos os atos em que participar. Ainda o direito a pedir para ser constituído arguido no processo.

Ao ser constituído formalmente arguido deve ser clara e imediatamente satisfeito o direito do suspeito conhecer os factos que constam do processo com interpretação criminal que lhe possam ser imputados. Passa também a ter direito à participação em todos os atos do processo que lhe digam respeito, a ser convocado para estes, a solicitar a nomeação de um defensor, a requerer a suspensão provisória do processo, a requerer a abertura da instrução pelos factos de que for acusado. Ao mesmo tempo, ao ser constituído arguido fica obrigado a comparecer perante juiz, ministério público ou órgão de policia criminal sempre que por lei for prevista a sua presença e for convocado para esse efeito, a responder com verdade sobre a sua identidade, a indicar uma qualquer morada onde deve ser considerado notificado e a atualizar essa indicação no caso de alteração, sendo este um ónus no interesse do exercício dos direitos do arguido. Por ordem do juiz podem ser aplicadas outras medidas de coação, sendo a mais grave, consoante a proporcionalidade para a prevenção social da atuação criminosa em causa, da proporcionalidade para a melhor continuação da investigação e da proporcionalidade para acautelar a sua fuga, desde a proibição de certas condutas à efetiva, imediata, prisão preventiva.

Após este excurso longo e um pouco ao largo do tema, cumpre recentrar.

Da valoração das declarações dos envolvidos no crime

A prova é simplesmente a demonstração da realidade de um facto. Mais, a prova não se satisfaz consigo própria. A prova é apenas o fundamento, o alimento, alfa e o ómega da convicção do intérprete. O que aparentemente não parece simples, não é. A este funcionamento da natureza da prova, acrescem:

1.ª dificuldade: a demonstração em causa implica uma técnica, uma formalidade que se conforme ao princípio do acusatório e do contraditório em processo penal, bem como ao da igualdade das partes e ao da legalidade.

2.ª dificuldade: a realidade será talvez o resultado de várias informações para se alcançar uma perceção mais completa e objetiva do facto, todavia, cada uma das várias pessoas participantes no processo dificilmente não darão por si próprias várias perspetivas sobre o mesmo facto; darão no máximo querendo não mais do que a perceção subjetiva, o conhecimento que pela sua sensibilidade e por outros instrumentos intelectuais, técnicos, etc. que tenham, adquiriram sobre uma determinada identificada situação da “realidade”.

A prova é não obstante um elemento fundamental do processo. A prova ainda que não seja necessariamente um momento da verdade no processo, é um momento de exposição e aferição da veracidade do processo. Veracidade no sentido de conformidade da justificação do estabelecimento do processo e propósito. A prova é o momento da avaliação da consistência do processo. A prova é ainda, ou em suma, o elo de ligação do mecanismo processual à realidade, à vida, às pessoas, que o processo pretende enfim regular. Sem o momento da prova sobra a ficção ou melhor dito o mecanismo frio, não humano, da atuação processual como uma máquina que começa uma operação e a termina no fim programado. Quer dizer também que sem o momento charneira da prova, o processo não seria um processo, mas uma operação.

Então se as declarações entre a vítima e o arguido forem contraditórias entre si? Ou seja, se alguém estiver a mentir? Se as declarações dos envolvidos forem, em parte ou no todo, contraditórias, na medida em que são contraditórias, poderão ambos estar a mentir.

A experiência nestes casos revela-nos que na ausência de imposições de política criminal, o intérprete em observância do princípio da presunção de inocência, costuma decidir in dúbio pro reo. De facto, assim é em muitos desses casos.

Outros casos há de fundamentação do interprete da valorização que faz de cada um dos depoimentos e testemunhos no processo. Nestes casos recorre o interprete essencialmente à sua experiência pessoal para decidir. Nestes deve recorrer à convicção que for criando à medida em que decorre a apresentação da prova. Quanto maior o valor formal da decisão do intérprete, maior a importância de ter ficado com alguma convicção das provas no processo, sendo que a justificação desta deve ser expressa, clara e precisa na fundamentação e não enclausurada numa qualquer fórmula designada de “imediação”, “experiência comum”, etc…

É devida na fundamentação de decisões nas condições em causa neste trabalho, o detalhe tão minucioso quanto proporcional à convicção que criou, do elemento, aspeto, circunstância, que em concreto determinou a existência de convicção. Deve constar a descrição expressa, precisa e completa da concreta e precisa espontaneidade na resposta do depoente/testemunha, da coerência, da pormenorização do seu discurso, da emoção exteriorizada, a desenvoltura do discurso, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para as advogadas e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda a série de circunstâncias na medida em que determinam a convicção valorizadora do respetivo discurso pelo intérprete, da consistência de certo momento, detalhe, aspeto do discurso com a experiência comum, com o que for que tenha sido determinante para a criação da convicção do intérprete.

O TESTEMUNHO COMO ÚNICA PROVA DO PROCESSO

Pela definição dada por ANA PRATA, o testemunho consiste “no ato pelo qual uma pessoa atesta a verificação de um facto de que teve conhecimento”[1]

É do conhecimento comum que diversas variantes influenciam um testemunho. Se é através do testemunho que se procura a transmissão da dinâmica dos factos e se é com ele que se quer alcançar a verdade; o testemunho precisaria de ser uma descrição objetiva do que ocorreu. Todavia, não se pode dizer que determinado depoimento é uma verdade objetiva; será simplesmente uma ou mais uma possibilidade de verdade, porque não é possível em um depoimento extrair-se integralmente o episódio ocorrido perante o depoente, pois ele vai sempre contar o ocorrido sob a sua perspetiva subjetiva.

No ensinamento de BENTHAM, as testemunhas são “os olhos e os ouvidos da justiça. É por meio delas que o juiz vê e ouve os factos que aprecia”[2].

O artigo131.º n.º1 do Código de Processo Penal, sinaliza que qualquer pessoa possui capacidade para ser testemunha, desde que a mesma não se encontre interdita por anomalia psíquica. O julgador deve levar em conta diversos aspetos que irão auxiliá-lo em sua decisão, considerando que sendo apenas o depoimento a única fonte de prova, o julgador irá ter em atenção as relações entre os envolvidos, o comportamento do declarante e a credibilidade do que este transmite durante o processo.

Por isso, “pela específica gravidade das suas funções, o juiz deve conhecer, mais do que qualquer outro, antecipadamente, aquelas armadilhas que o espírito humano prepara, inconscientemente, a si mesmo”[3].

O julgador analisa e interpreta o que lhe é transmitido, através de uma pré-concepção já inerente a ele por suas convicções já pré-determinadas, onde questões subjetivas estão intrinsecamente interligadas à objetividade necessária. “Por outro lado, no seu processo de avaliação e tomada de decisão, o julgador, como ser humano que continua a ser, utiliza (…) estratégias ou atalhos mentais, pois que não costuma ter presentes todos os elementos de facto que lhe permitem tomar uma decisão (…). Há várias tendências gerais que afetam frequentemente as nossas qualificações/atribuições e explicações. Os juízes não estão imunes a este fenómeno[4].

Portanto, em um processo onde se apresente como única prova o depoimento da vítima, caso muito comum nos crimes de violência doméstica os juízes vão aferir a existência ou não de um crime na credibilidade da prova testemunhal extraindo as circunstâncias que relevam, nomeadamente a postura, o comportamento geral da testemunha, indiciação da sua personalidade e caráter, isenção e segurança no discurso, em suma, linguagem não-verbal.

CONCLUSÃO

Após a análise dos envolvidos em processos crime onde encontramos como única fonte de prova a própria vítima podemos concluir que resta ao julgador se socorrer da prova por presunção judicial isto é, o julgador utilizará de um facto já conhecido para julgar um facto desconhecido.

Outrossim, nada obsta a que o julgador fundamente a sua condenação apenas com base nos depoimentos da vítima, considerado que o mesmo julgou aquele credível em seu exame crítico, com respaldo no número 2 do artigo 374 do Código Processo Penal.

Entretanto, a ausência de prova para corroborar o testemunho da vítima pode isentar muitos criminosos de uma condenação; nestes casos, o julgador está limitado à sua convicção para eventualmente condenar e fora dos limites desta a obedecer ao in dúbio pro reo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • PESSOA, Alberto, A Prova Testemunhal, (Estudo de Psicologia Judiciária), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1913;
  • BATTISTELLI, Luigi, A Mentira nos Tribunais, Estudos de Psicologia e Psicopatologia Judiciária, Coimbra Editora, Coimbra, 2.ª edição, 1963;
  • RAINHO, José Manso. Prova testemunhal: prova-rainha ou prova mal-dita? Algumas considerações ajurídicas acerca da prova testemunhal, disponível no site www.trg.pt , consultado em 18/09/2013;
  • PRATA, Ana, VEIGA, Catarina, VILALONGA, José Manuel, Dicionário Jurídico, 2.ª ed., Vol.II, Direito Penal e Direito Processual Penal, Almedina, Coimbra, 2009;
  • O direito a palavra, o direito à imagem e a prova audiovisual em processo penal”, de Dr. Nuno B. M. Lumbrales, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2007, Ano 67 – Vol. II – Set. 2007;
  • “A Sociedade Medieval Portuguesa”, de A. H. de Oliveira Martins, Esfera dos Livros, 2010;
  • “Capital e Ideologia”, de Thomas Piketty, Temas e Debates, 2020.
  • Acórdão de 27/6/2019 do Tribunal da Relação de Lisboa, disponível em www.dgsi.pt;
  • Acórdão de 18/1/2017 do Tribunal da Relação de Lisboa, disponível em www.dgsi.pt;
  • Acórdão de 11/6/2008 do Tribunal da Relação do Porto, disponível em www.dgsi.pt;
  • Acórdão de 9/1/1997 do Supremo Tribunal de Justiça, disponível em BMJ 463 (1997), bem como em www.dgsi.pt .

[1]     PRATA, Ana, VEIGA, Catarina, VILALONGA, José Manuel, Dicionário Jurídico, 2.ª ed., Vol.II, Direito Penal e Direito Processual Penal, Almedina, Coimbra, 2009, p.486.

[2]    PESSOA, Alberto, A Prova Testemunhal, (Estudo de Psicologia Judiciária), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1913, p.44

[3]    BATTISTELLI, Luigi, A Mentira nos Tribunais, Estudos de Psicologia e Psicopatologia Judiciária, Coimbra Editora, Coimbra, 2.ª edição, 1963, p.89.

[4]    RAINHO, José Manso, Prova Testemunhal: Prova Rainha ou Prova Mal-Dita?, op. Cit.

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